Tinha em sua posse um espólio histórico de valor incalculável. No último momento pegou fogo ao lar. Virou costas ao mundo e desapareceu.
Levava na bagagem uma memória. Uma única só memória de toda uma existência em cativeiro na sua própria residência. Uma lembrança de dias enfadonhos repletos de urgentes tarefas e de chuva. Sim. Chovia sempre naquela região. Até há quem diga que o sol nunca ali nascera. Que era só uma luz que pairava.
Ulisses Vieira, homem de certa idade, robusto e com farta barba, coleccionava certos objectos antiquíssimos que não eram para qualquer mão. A importância destes era tal que para os manusear, Ulisses calçava umas luvas brancas, delicadas, com tanto cuidado que só a acção aperfeiçoada de as calçar parecia que repelia todos os germes.
Ora, certa manhã, já as goteiras cantavam, o nosso bem parecido Ulisses acordou com um vazio que nunca tinha experimentado. Não lhe ocorria nada. “Ai meu deus, que tenho eu?”, questionou-se. Sentia-se frio. Sentia-se sem vontade. Percorreu o quarto com o olhar. Os lençóis. A cama. “Ai meu deus que tenho qualquer coisa.”, disse.
A chuva caía que nem um ballet, gota a gota, sinfónicamente atormentando Ulisses Vieira. Desnorteado levantou-se da cama. Lentamente. Confuso. Desceu as escadas rumando à cozinha. Pensou que talvez uma infusão de plantas exóticas, que mantinha preservadas em frascos, o aliviasse deste súbito transtorno.
Ao entrar na cozinha cambaleou. Sentiu uma desolação desconcertante. Apoderou-se dele uma vontade bruta de destruir toda a casa. Dirigiu-se sofregamente para o lavatório arrastando os pés que, naquele momento, lhe pesavam como kilos em excesso.
Vislumbrou o seu reflexo na água da bacia. Estava mais magro. “Ai Jesus, que é hoje que morro. Ai que eu morro!”, dizia desesperado enquanto procurava uma aspirina.
Como devem suspeitar, o seu abrigo era remoto e isolado. Estava claramente distante de qualquer posto médico. Existia portanto uma certa dificuldade em contactar com um praticante de medicina.
Ulisses correu para a sala desesperado e estagnou. Petrificado a uns metros da sua poltrona de leitura viu um lume. Um grande lume imaginário que consumia toda a casa. Que a triturava, viga a viga, parede a parede, sem deixar sequer um osso.
Foi nesse espasmo de insanidade que retomou forças. Subiu para o quarto, vestiu-se apressado, meteu aquela memória na valise em pele castanha, ateou tudo em labaredas e partiu.
Ulisses estava agora a algumas horas de distância da sua propriedade. Sondou a mala com os seus olhos verdes e posou-a no chão. Sabia que o seu conteúdo o poderia ajudar. Que memória era aquela que levava consigo? A única que no meio de tantos objectos valiosos fora escolhida para transporte? Era um elixir especial. Um elixir que guardava há muitos anos, originário de uma certa selva Africana, que, segundo quem lho tinha oferecido, curava qualquer enfermo dos males mais poderosos. Mas para Ulisses aquele frasco tinha um significado especial. Pois quem lho ofertara tinha sido seu pai nos tempos de infância. E cada vez que aconchegava a vista com o frasco muitos sentimentos emergiam à superfície.
Após uns minutos tomou coragem. Abriu a mala. As mãos tremiam que nem um nove ponto zero na escala de Richter. Pegou no frasco e tirou a rolha como pôde porque vinha desprovido de saca rolhas. Ele sabia que já não tinha nada a perder. Ao jogar o gargalo à boca as suas mãos impregnadas de suor ficticiamente criaram musgo marítimo. O frasco deslizou descontroladamente de seus dedos e estilhaçou-se em mil cacos na vereda desprotegida.
Nunca mais ninguém viu Ulisses Vieira. Homem aparentemente são e coleccionador de artefactos históricamente riquíssimos. Mas não se iludam caros leitores deste conto sinuoso. Pode acontecer a qualquer um…
Sem comentários:
Enviar um comentário