terça-feira, 5 de agosto de 2025

Uma história de violência

 Duas da madrugada. Os feixes de luz amarela dos candeeiros escovam na velha calçada. A velha cidade de Braga respirava a rudeza arquitetónica. Afonso Cadavez teve uma vontade absurda de urinar contra a parede amuralhada da catedral. Nisto, ouviu algures o canto apoplético de um cigano ébrio. «Bem – pensou para si mesmo –, vou urinar aqui mesmo diante desta Santa.» Tratava-se da Nossa Senhora do Leite. Por momentos, julgou que estaria a conspurcar o velho ícone com o seu procedimento. Nossa Senhora do Leite sorriu escarninho. Afonso perscrutou-a. «Terei febre?»
À sua esquerda surgiu um velho homem de uma compleição algo alquebrada, semblante sério e como que enfaixado numa carapaça. Afonso Cadavez recolheu-se o mais possível contra a parede; entreolhou o homem... mas, seria possível? O homem evaporou diante dos olhos; surgira em forma de nuvem no alto do céu e sentou-se na lua. Estaria Afonso Cadavez doente? 
Nisto o velho homem saltou para o telhado do Governo Civil e dali para o velho solar; escondeu-se atrás de um plátano e aproximou-se vindo daquela direcção, através da rua do Forno. Aquilo só inspirou em Afonso Cadavez um profundo respeito pelo sobrenatural; por pouco não soltou um gemido.
- És o Afonso, certo?
- Sim, é o próprio. Posso? – perguntou com alguma mesura.
- Queres fumar cachimbo, Afonso Cadavez?
- Queira ter a bondade.
Afonso Cadavez ficou de certo modo aparvalhado diante da parede amuralhada, anuindo que sim, sumidamente: era um pouco estranho e até anti-natural a presença daquele velho com perguntas sobre o seu perfil do Facebook. Neste somenos, para seu completo aniquilamento, o velho arrostou-lhe pela gola do casaco.&nbsp;</div><div style="text-align: justify;">- Que se passa? – exclamou Afonso no clamor da investida.&nbsp;</div><div style="text-align: justify;">- Anda, não é nada. Sem amuos, vá – disse o velho sacudindo a gola de Afonso. Todavia, Afonso Cadavez tentou soltar-se com um safanão; não tinha certamente um receio tão venal que não pudesse soltar-se das mãos grandes e penugentas de um homem velho. Mas isso constitui um agravo na crise do homem, pois que o seu rosto franziu de forma absolutamente picaresca, tendo assim abocanhado o nariz de Afonso Cadavez.
O muco de sangue jorrou na calçada com incrível aparato.
- O meu nariz, homem! – chorou violentamente o jovem rapaz, visivelmente rendido de fortes dores.
- Para que precisas do nariz? – gritou o velho; e a sua voz parecia ostensiva e desgovernada.
Afonso arrostou-se no chão.
- Para que precisas do nariz? Aqui – continuou o velho um tanto ressentido de velhas memórias, apontando para uma gárgula que virava o traseiro para norte, aquela mesma gárgula que infligia terror ao salteadores de relicários – aqui diante de nós está a história de dez séculos de uma velha catedral - e tu vens urinar na parede amuralhada da Sé de Braga? Ele bem olhou para mim quando me sentei em cima da lua. Precisei de me sentar na lua. És tu quem me vai impedir?
Afonso Cadavez chorava com ardor. Viu qualquer coisa no chão diante dele; qualquer coisa adunca que o homem cuspiu no chão com veemência. Constatou que se tratava do seu nariz.
- Amigo, é o teu nariz! Que pensas fazer em relação a isso? Isso não vai lá nem com mistura de serrim.
Afonso confrangeu num fragor. O velho assestou-lhe em cheio com o pé. Afonso confrangeu copiosamente.
- Julgas naturalmente que estás em situação de apontar o dedo a qualquer idiota, mas não passas de um lorpa. Ao mínimo contacto com a realidade, comoves-te como o diabo foge da cruz. És lorpa e covarde!
- Não é nada – disse o velho repousando o olhar em Afonso Cadavez. - Tu é que estavas a urinar contra a parede da Sé de Braga. Isso não posso permitir.
Nisto, dois homens acorreram por compadrio do homem.
- Que se passa? - rumorejaram. É para bater?

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

De uma amargura concreta

Sedento de sangue abri a mala. No interior, em flagrante delito, uma fonte e uma cascata. Penetrações ocultas na noite fendiam muito brancas. Na base do copo um cartão de visita.

Uma forma de apetite

 
Felinos passeavam nas ruas ondulantes. A cada movimento o céu rasgava tesouras flamejantes. Uma dor acutilante apoderou-se do nómada. Na curva uma teta de Vénus esgueirou-se sobre a palanca e hortas incendiárias absorveram o instinto das garras do animal.

Hoje fazem-se gravuras. Do ocidente uma nuvem meteórica calcula a mancha repleta de índices. A cada índice uma movimentação sublime e esmaltada. “Cracks on the wall”, ouve-se. Parto o que resta de um vaso de onde saem figuras regenerativas.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Uma orla insalubre

Oceano intransitável
uma orla insalubre
 
Desperto fixo
atentamente
lagoas opostas
e silos de radioactividade

Nos dentes geriátricos
a absolvição
uma agulha num palheiro de quinquilharias

Terminologia para um simplex. Invólocro convexo

Em tempos bebi
o suco das esferas
e espremi nébulas
de terror

Ao corte as saliências vitais
revolviam seguras os parâmetros
 
Um escafandro geométrico
uma cápsula ad vitam
e ao longe, gigantes de gás
que se dissolviam
em fulgurantes plumas

Fachada equidistante de uma nova arquitectura

Revesar incólume
sobre as palmeiras
e de frente um mato
silencioso

Palmeiras desviadas
uma palma aberta
outra fechada
sobre o quilombo arquitectónico
que veste de seda e geada

Prédios gastos
devoram pastos
vistos da fachada equidistante

Náutica de dois polos entremarés

Diante de mim
três velas içadas
e no navegar sobre térmitas
o barco embriaga-se
de sal
de volumes intermarés

De costa a costa
uma rebentação íngreme
desdobra o sol
onde múltiplas faces se vigiam
faces caleidoscópicas
de outras marés

Dinamite e lâmpadas
outrora fachos
guiam complacentes
os espectros